terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

8. o jantar

Na manhã de quinta-feira Matilde recebe um e-mail de Luro Baus a convidá-la para jantar em casa dele no dia seguinte. Seguem-se instruções minuciosas:


Tomo a liberdade de lhe fazer algumas sugestões para a noite de amanhã.
Como sabe, a minha mãe vive comigo e virá recebê-la, pelo que deverá trazer uma roupa conservadora, que não fira a sua sensibilidade antiga. Sugiro uma blusa de gola alta, justa, sem mangas, e uma saia pelo meio da perna. Um mensageiro entregará o conjunto em sua casa esta tarde.
Como marca da sua dedicação à minha vontade, não usará cuecas. E deve colocar o buttplug de gel rosa que tive o prazer de lhe oferecer em Paris.
Luro.
A casa (grande, branca, com janelas inglesas) fica numa rua sossegada por trás do Casino, entre carvalhos e plátanos. O pintor vem recebê-la ao portão, subindo depois com ela o caminho entre as árvores que conduz à porta principal.

«Vejo com agrado que seguiu as minhas instruções», disse ele.
«Sim.»
«Todas?»
«Todas.»
«Ah!»
«Tinha escolha?»
«Não me pertences», retorquiu ele. Tratou-a por tu. Matilde anota o facto. Foi transposta uma barreira. «Muitas coisas poderiam ter-se interposto entre ti e este momento. Até», e ele sorriu, «a tua vontade.»
Chegaram ao fim do caminho e Luro Baus empurrou a porta e afastou-se para ela entrar.
A casa, por dentro, não exibia a grandeza que a vista do exterior sugeria. Um átrio estreito, esmagado por uma escada em madeira que conduzia aos andares superiores. A luz, vaga, revelava a poeira que cobria os móveis. Havia o cheiro a mofo próprio dos lugares pouco ventilados. Matilde deu por si a mover-se cuidadosamente, tentando abafar os passos.
A mãe de Luro Baus estava ali para a receber. Era uma bela velha senhora de bandós branco-violeta e nariz adunco, com olhos pequeninos, atentos e sorridentes. O que saberia ela da vida secreta do filho, dos seus gostos? Enquanto a cumprimentava Matilde estava dolorosamente consciente do buttplug e da ausência de cuecas. Isso era constrangedor e excitante.


*


«E esta é a minha parte da casa», disse ele, empurrando uma porta.
Matilde penetra no covil de Luro. É assim que, secretamente, lhe chama. O cheiro, a luz e o espaço mudam magicamente. Nada ali recorda a entrada da casa, a velha mãe ou as ruas burguesas do Estoril. Um grande espaço vazio onde meia dúzia de objectos lançam pesadas forças gravitacionais, que obrigam Matilde a deslocar-se de acordo com percursos pré-determinados – ou, pelo menos, é essa a sensação que a invade. Janelas largas por onde entra o sol em grandes jorros. Depois da penumbra da casa antiga, o espaço e a luz são como socos violentos que a fazem cambalear.
No centro da sala, coberta por um tapete cinzento e espesso, um sofá branco de três lugares. Luro Baus dirige-se para ele e ordena a Matilde que se sente. Ela obedece. Ele mexe em qualquer coisa num dos braços do sofá e começa a ouvir-se uma música que ela reconhece rapidamente: Leonard Cohen, In my secret life.




Matilde observa a sala à sua volta. Dois nus esculpidos em mármore negro e um aquário enorme dominam o lugar. Não há móveis, tirando o sofá e uma longa prateleira que corre uma das paredes a todo o comprimento. Um quadro domina a sala: um corpo feminino atado a um poste, num fundo de azul e amarelo – uma versão tropical de Modigliani.


«Gosta?» pergunta Luro Baus ao ver que ela observa o quadro. Mas o tom em que faz a pergunta torna evidente que a opinião dela lhe é completamente indiferente. Para Matilde é uma experiência nova – ver as suas opiniões, os seus gostos, ela mesma, serem liminarmente ignorados. A sensação que Luro Baus transmite é de estar interessado nela como objecto – atraem-no as roupas, as performances e, eventualmente, o corpo dela, mas esse interesse não se traduz em expectativa ou disponibilidade relativamente a quaisquer outros aspectos da vida ou da personalidade dela. Ela é um objecto – uma bela coisa acabada, finita, sobre a qual fora feito um juízo, à qual se atribuiu um lugar e uma função, da qual não se esperam revelações ou alterações futuras.
«Vinho? Cognac?»
Matilde recusa.
«Água?»
Ela olha-o nos olhos: estará a divertir-se à custa dela? Mas a expressão dele é de absoluta seriedade.
«Não, obrigada.»


Entram numa galeria formada por uma antiga varanda, agora fechada e com grandes janelas veladas que deixam entrar uma luz abundante mas não tão intensa que estrague as tintas dos quadros que enchem a parede.
«Este é o meu museu particular. Alguns são meus. Outros não. Não encontrará aqui gente famosa. Não tenho dinheiro para isso. De resto, o único que gostaria de ter está num museu público: O Jardim das Delícias.»
«Ah!»


«São apenas corpos.»


«Histórias de paixão e morte. Tango e facas. Uma mulher negra possuída por um marinheiro bêbado, azul como o oceano que lhe inundou os pulmões uma noite. Solidões.»


«Nem mesmo os cisnes atingem esta beleza. A beleza e a elegância exigem sofrimento. A escrava perfeita deve ser tão elegante e suave no seu sofrimento como esta bailarina.»
Ao lado há uma segunda fotografia.
[o cisne negro]
«Uma versão do Lago dos Cisnes. A coreografia desse bailado sempre me irritou. Tão pura e imponderável. Quis fazer uma versão em que o cisne fosse humilhado.»
«Eu acho-o belo assim», diz Matilde.
«Sim. Eu também.»


«Na Segunda Guerra Mundial, os japoneses obrigaram centenas de mulheres coreanas a integrarem bordéis itinerantes que acompanhavam os exércitos. Eram verdadeiras escravas, sem direitos ou segurança de espécie alguma, usadas para acalmar os instintos animais dos soldados. Estas pinturas foram realizadas por sobreviventes, 30 ou 40 anos depois. São notáveis porque mostram até que ponto os acontecimentos as marcaram.»
«Como ferro em brasa», murmura Matilde.
«Estas histórias interessam-me porque falam de uma escravatura violenta e despótica», continua ele. «No mundo bdsm a escravatura significa geralmente um contrato de uso e protecção, um pouco à maneira dos antigos contratos de casamento. O Master possui a escrava mas, geralmente, assume para com ela uma série de deveres, incluindo alimentá-la e abrigá-la; e, ainda que a utilize para jogos sexuais impensáveis à luz da velha ética burguesa, mantém-se obrigado a respeitá-la na sua dignidade fundamental de ser humano, o que quer que isso queira dizer. Isso não me interessa nada. Atrai-me a escravatura sexual. O tráfico de carne branca, por exemplo, como ele existiu no princípio do século entre a Europa Central e a Argentina, para onde raparigas polacas e checas eram atraídas com propostas de casamento e depois forçadas a trabalhar em bordéis. Ou estes bordéis onde o exército japonês invasor obrigava centenas de raparigas coreanas e chinesas a aliviar as tensões da soldadesca. Isso interessa-me. Não me interessa a escravatura negra da América confederada, que era essencialmente económica e onde as mulheres, tal como os homens, eram essencialmente bens, passíveis de transacção e, como tal, valiosos. Não se destrói um bem valioso. A escravatura branca voltou, agora que os países de Leste acabaram, e isso é bom. Escravas albanesas, moldavas, bielorrussas. Exóticas e perdidas. Sem família que as possa resgatar, ou um Estado que as defenda. Absolutamente disponíveis. É maravilhoso.»
Matilde está fascinada com a brutalidade que se adivinha por trás do tom cortês com que o velho pintor expõe as suas ideias. A cortesia é uma roupagem – os veludos bordados a fio de ouro que os senhores da Renascença envergaram para assistir à morte de Giordano Bruno na fogueira. Luro Baus partilha com eles e com a populaça a embriaguez do sangue, mas sabe que os seus motivos são superiores – maldade pura em vez de baixos instintos animais.
Meu Deus, quem é este homem? Matilde arrepia-se e, ao mesmo tempo, maravilha-se. Tem a sensação de contemplar de perto um anjo caído. Um sátiro encanecido, sem um pingo de moral naqueles olhos escuros e luminosos, ardentes como devem ter sido os olhos do diabo no sabbath. Mas a maldade que lhe entrevê na expressão tem qualquer coisa de grandioso. Pode-se imaginá-lo a queimar lentamente corpos de jovens mulheres enquanto prova um bourgogne. Matilde recorda certos quadros do pintor, o ciclo intitulado Jovens Mulheres Sofredoras, em que corpos nus são representados sujeitos a instrumentos de tortura medievais – estilizados em pinceladas impressionistas, deformantes, mais próximas do esboço que do delírio – o sangue metamorfoseado em luminosas manchas de tinta de cores primárias – e experimenta um arrepio: sabe naquele instante que eram verdadeiros. Talvez ela mesma venha a servir-lhe de modelo?
«Acha que eu poderia posar para si?» pergunta.
O pintor avalia-a. Os olhos dele examinam minuciosamente o corpo dela, o cabelo, as orelhas, os ombros, as ancas. Anda em redor dela para ver melhor a forma das pernas, o rabo, o peito – explica-lhe isso enquanto o faz, num tom de voz neutro, profissional. Essa frieza excita Matilde.
«Talvez», diz apenas.
Entram na divisão seguinte. Trata-se de um quarto não muito grande, imerso na penumbra. Uma vela arde a um canto. Luro Baus parou, em silêncio. Parece aguardar alguma coisa. Os olhos de Matilde habituam-se progressivamente à luz existente e ela consegue por fim distinguir a base da vela: um corpo humano invertido, admiravelmente real.
«Parece real», diz.
Depois verifica que o ligeiro frémito que agita a vela e que ela atribuíra às correntes de ar se propaga ao corpo. Incrédula, aproxima-se mais e compreende que o corpo é realmente um corpo humano vivo – o corpo de uma mulher nua numa difícil posição de ioga, cabeça e braços apoiados apoiados no chão, coxas e pernas flectidas de forma a desenharem um triângulo em que o vértice superior é constituído pelos pés, e a vela enfiada no sexo, ardendo no espaço vazio do triângulo.


«Meu Deus!» exclama.
Nota a posição perfeita do corpo. Os músculos claramente desenhados do ventre, os tendões das coxas. A cor vermelha da vela, que se confunde com a carne rosada. As meias negras ajudam a limitar o corpo ao essencial: o torso e a porção interna das coxas, a vulva e a vela acesa. Pequenas gotas de cera escorrem ao longo da vela e mergulham nos grandes lábios mas a mulher não reage. O corpo mantém-se imóvel, agitado apenas por leves movimentos respiratórios.
«Mas ela não se mexe?»
«É uma perfeição difícil de atingir. Mas, como pode ver, é possível.» O velho pintor fixa Matilde nos olhos enquanto diz isto. «Tu mesma», acrescenta depois de um instante de silêncio, «poderias fazê-lo.»
Matilde experimenta um leve arrepio ao ouvir aquilo. E ao notar o súbito tratamento por tu. Uma violência, vindo daquele homem tão formal, tão distante. Compreende a insinuação. Não pode sequer negar que a ideia a excita. As circunstâncias em que veio a casa de Luro Baus, sem cuecas e com o buttplug, obedecendo a ordens recebidas por e-mail, acodem-lhe mais uma vez à memória e dâo-lhe uma estranha sensação de vulnerabilidade.
«Esta foi uma das minhas obras mais difíceis», diz Luro Baus enquanto saem do quarto e avançam por um corredor vazio e branco. «Foi preciso encontrar uma escrava, treiná-la, condicioná-la – Luro Baus acentua a última palavra – condicioná-la foi o mais difícil e o mais importante. Para que uma obra destas resulte plenamente não chega que a escrava faça o que lhe ordenam; é necessário que adira inteiramente ao espírito da obra, que incarne verdadeiramente a ideia.»
Matilde lança um último olhar à mulher quando a porta do quarto se fecha. Vê como continua imóvel, uma estátua viva representando sem pausa para paredes vazias.
«Uma escultura de carne», continua Luro Baus. «Nada de original. Mais importante do que isso é a perversão essencial: para conseguir que ela desempenhasse satisfatoriamente o seu papel foi necessário recorrer a técnicas de ioga. Suspensão do espírito e disciplina do corpo. Foram meses de treino intenso e cuidadoso. Mas, onde o ioga procura a libertação do espírito, eu anulei o espírito e reduzi o corpo a um objecto. É destas perversões que eu gosto.»
«Ela está sempre ali?» pergunta Matilde.
Luro Baus lança-lhe um olhar penetrante:
«Queres dizer, sem utilidade evidente? Sem ser utilizada numa performance, por exemplo? Sem que alguém a veja ou admire?»
«Exactamente.»
«Sim. Está sempre ali. Como uma peça de mobiliário.»


Na sala seguinte as paredes nuas, com excepção de uma enorme fotografia a preto e branco de uma mulher enforcada. Matilde pára diante da fotografia. Está horrorizada e, ao mesmo tempo, fascinada.
«Essa fotografia», diz Luro Baus, «tem uma história muito longa. Conto-ta depois. Outro dia.»


Fica diante dele, olhos baixos, nua. Os sapatos de salto alto obrigam-na a lançar o peito para a frente, e a consciência dessa posição forçada é-lhe dolorosa.
«A primeira lição de submissão», diz Luro Baus, «é a seguinte: aprenderes a fazer seja o que for que te seja ordenado, sem hesitação ou discussão.»
Aponta uma barra de metal suspensa do tecto um pouco acima da cabeça dela:
«Vais agarrar a barra com ambas as mãos e ficar assim. A posição é boa porque as tuas mamas ficam totalmente expostas, acessíveis ao chicote. Não vais ser amarrada à barra, as tuas mãos ficarão livres», explica o pintor enquanto escolhe um chicote de entre vários numa mesa. «Mas não vais largar a barra. Nunca.»
Ele espera enquanto ela se põe em posição.
«Agora», diz.
Matilde ouve o silvo do chicote cortar o ar e logo a seguir uma dor aguda morde-lhe as mamas. Geme mas não larga a barra.
«Muito bem», diz Luro Baus.


A sessão dura 15 minutos: 40 chicotadas.
Um criado entra a meio e entrega a Luro um copo de vinho tinto. Luro faz uma pausa para provar o vinho, depois continua a chicoteá-la. Vai bebendo o vinho em pequenos goles.


«Agora vamos jantar», diz Luro, depois de a mandar soltar a barra.


Na posição em que ficou amarrada, Matilde não pode ver o que se passa à mesa. Pode apenas ouvir o tilintar de pratos e talheres, o ruído do vinho que cai no copo, pequenos rangidos da cadeira quando o pintor se move.

7. sassoeiros

«Uma vez fui à procura de SM a sério», diz Matilde. «Queria experimentar the real thing. Descobri um clube em Sassoeiros. Contactei-os por email e convidaram-me a fazer-lhes uma visita.»
«Assim, sem mais nem menos?»
«Assim, sem mais nem menos. Até me convidaram para o dungeon deles, que fica numa quinta.»
«Com escravas, chicotes e jaulas?»
«Acho que sim. Andavam por lá umas putas nuas e com coleiras no pescoço. E estava tudo cheio de folhetos sobre sexo seguro, os perigos da SIDA e as vinte melhores maneiras de evitar problemas com piercings e tatuagens.»
«Isso não mete muito medo.»
«Nada. Quando entrei estava à espera de gente estranha, a rosnar e a fazer ameaças veladas. Que me aprisionasse e chicoteasse no decorrer de uma orgia. Afinal, sabes o que me disseram?»
«O quê?»
«Que o sábado seguinte seria muito importante.»
«Porquê?»
«Foi o que eu perguntei: porquê? Resposta: é o nosso jantar anual.»
«Não acredito.»
«Sim. No Bota Alta.»
«Estás a gozar.»
«Não estou. Fizeram mesmo um jantar. Como qualquer clube de filatelia.»
«Isso é ridículo.»
«E puseram fotografias do jantar no site deles. Vês uns tipos gordos, com coletes de couro e mascarilhas de carnaval, a saírem dos carros. Umas tipas com ar mais rasca do que as putas do Intendente a fazerem-lhes festas. Etc.»


«Coitados», conclui Matilde. «No fundo, não devia ter esperado outra coisa. Nos outros lados é igual. Vais espreitar o bdsm americano e o que vês? Mulheres de meia idade à procura de um papel de donas de casa. Ex-hippies barrigudos ainda com a Harley-Davidson escondida na garagem que trabalham em cidadezinhas perdidas naqueles estados americanos do meio do continente de que ninguém sabe nunca o nome: Nevada, Nebraska, Ohio e assim. Propostas de slavery 24/7 R/L que incluem a cláusula: f) realizar as tarefas domésticas. Promessas de chicote se a escrava não limpar convenientemente o pó. Be my slut at night and my wife and beautiful lady outdoors. Por amor de Deus!»

6. filmes

Diz Matilde:
«Recordo-me de um filme pornográfico onde, a certa altura, havia uma cena brilhante. Um homem, um vagabundo, passa diante de uma roulotte, num parque citadino, quando uma das janelas se ilumina. Enquadrados pela janela, um homem nu, de quem se vê pouco mais do que as coxas peludas e o sexo, e uma mulher, também nua e ajoelhada diante dele. A mulher esfrega as mamas de encontro ao vidro, exibindo-se para o vagabundo, que pára para ver, sem querer acreditar naquilo que vê. A mulher excita-o deliberadamente. Dá-se. Por fim pega no sexo do homem ao seu lado e executa um broche ardente, enquanto continua a olhar de soslaio para o vagabundo. O homem vem-se para o vidro e ela lambe todo o esperma - sempre sem tirar os olhos do vagabundo. A cena é magistral, parece impossível encontrar-se uma jóia assim num filme X-rated. É magistral porque é verdadeiramente teasing. Excita. Ora eu acho que aquilo que torna a cena excitante é o antagonismo, diria moral, entre a exposição despudorada e entusiasta do corpo da mulher ao olhar do vagabundo e a sua absoluta dedicação ao prazer do outro homem, a quem o facto de não lhe vermos nunca o rosto torna inatingível e, portanto, omnipotente. É o facto de ele a exibir, tornando ao mesmo tempo claro que ela lhe pertence, como poderia exibir um Ferrari diante dos miseráveis habitantes de um bairro da lata - é a obscenidade dessa ostentação que é excitante. Deve haver qualquer coisa animal nesta necessidade masculina de posse. Em Paris, em 1944, depois da Libertação, raparam o cabelo às mulheres que tinham sido amantes dos alemães. Aos colaboracionistas, fuzilaram-nos. O crime dessas mulheres não foi a traição, mas o abandono: ao deixarem-se possuir pelos alemães era a França que deixavam que eles possuíssem. Um crime muito pior do que o colaboracionismo, que só degradava quem o praticara e podia portanto ser apagado pela eliminação física dos colaboracionistas. O abandono do corpo aos alemães, pelo contrário, encornava a Pátria, encornava todos e cada um dos homens franceses. Lavar a honra de uma e outros exigia um ritual de expiação. Por exemplo a cabeça rapada e a vergonha resultante dessa exposição pública. Podiam também ter marcado essas mulheres com uma flor de lis, como faziam às putas no tempo do Cardeal Richelieu, ou enforcá-las na praça pública, ou lapidá-las, como ainda se faz em certos países muçulmanos, mas o Ocidente já perdeu essa força bárbara. O sentimento, contudo, mantém-se, bem como a necessidade absoluta de o aplacar.»

5. ego


Dar um tiro entre os olhos de um desconhecido para conhecer o gosto de matar. Observar de perto, acocorado, os líquenes que crescem nas fendas do gelo, na Antárctida. Entrar no WTC antes do 11 de Setembro. Participar numa orgia com a Jenna Jameson e a Katherine Millet e foder as duas. Percorrer o circuito de Imola no carro de Ayrton Senna. Escrever O HOMEM SEM QUALIDADES. Dizer pelo rádio: Hello Houston, here Tranquility Sea moon base. Estar nos Dardanelos em 17 (e sair vivo de lá para poder recordar). No fundo de cada alma há sonhos assim, que só não doem porque, por um qualquer mecanismo freudiano, foram desde o início catalogados como impossíveis. Sabe-se que se vai morrer sem os realizar, mas a frustração que isso poderia causar é travada deliberadamente: sabemos que não são deste mundo. Mas o que aconteceria se o mecanismo de recalcamento fosse retirado? E se fosse possível realizá-los? E se se procurasse deliberadamente a sua realização?

4. blind date

Não interessa como a conheci. Conheci-a. Nem interessa por que combinámos o blind date. Combinámos. É este o ponto de partida da história: eu conheci-a e combinámos um blind date.


ELA > Há um motel perto da A2, na estrada para Sesimbra. Chama-se Os Quatro Flamingos. Estilo americano: quartos de rés-do-chão dispostos em duas alas e uma recepção onde se levantam e depositam as chaves sem ser necessário apresentar identificação. Encontramo-nos lá amanhã, às onze da noite. Quarto 11.
EU > Já tens o quarto marcado?
ELA > Acabei de fazer a reserva.
EU > Que eficiência...
ELA > Eu sou assim.
EU > Não podíamos encontrar-nos num sítio mais a jeito? Um hotel em Lisboa?
ELA > Não. Tem de ser nos Quatro Flamingos.
EU > Seja nos Quatro Flamingos.


Enviou-me um email com um mapa desenhado a esferográfica onde se indicava a saída da A2, o número de quilómetros que era preciso percorrer a seguir e o semáforo onde teria de virar para uma estrada secundária que me levaria enfim ao motel. Fazia mapas como um homem: uma linha assinalada com meia dúzia de setas e legendas breves. Nada de pormenores supérfluos. E o telefone do motel, para o caso de eu me perder.
Não sou esquisito com os sítios. Dou uma queca em qualquer lado. Certa vez comi uma divorciada na sala, enquanto os filhos dela dormiam. Ela não se atrevia a fazer barulho. Saber que ela não gritaria despertou todos os meus instintos sádicos. Durante duas horas diverti-me a comê-la da forma mais dolorosa que consegui. No fim deu-me um beijo apaixonado, antes de ir ver se os filhos estavam bem aconchegados nas camas. As mulheres são muito complicadas. Mas um motel desconhecido numa estrada desconhecida, com uma desconhecida – uma desconhecida disposta a encontrar-se num sítio desses com um tipo desconhecido – bem, não é coisa que deixe um homem sossegado. Veio-me o Bobbitt à memória. Prometi a mim mesmo que iria assegurar-me da não existência de qualquer objecto cortante no quarto. Nem mesmo uma tesoura das unhas.
No dia seguinte, depois de jantar uma coisinha leve, meti-me à estrada. Havia um semáforo, como dizia o mapa, e uma placa de madeira pintada assinalava o ponto onde se saía da estrada para um caminho de terra, que entrava pelo meio dos campos, escuro e cheio de buracos. Avancei devagar, tentando poupar a suspensão do TT Boy, durante cerca de quinhentos metros. O motel surgiu por fim, um edifídio comprido e térreo encimado por um letreiro de néon verde e azul: Os Quatro Flamingos. O sítio não tinha nada a ver com flamingos, fossem eles quatro ou apenas um: seco, descampado, com dois candeeiros muito fanados a iluminarem o bocado de estrada em frente do edifídio. Uma série de portas desenhava-se ao longo das paredes, onde deviam ser os diferentes quartos, e havia umas sebes pequenas em frente das portas, num arremedo de privacidade. O aspecto geral era desolado e pindérico.
«Perfeito», murmurei.
O número 11 ficava num extremo do edifício, fora do halo luminoso dos candeeiros do motel. Uma situação bem escolhida, pensei. Já havia um carro parado diante da porta do quarto. Lancei um olhar à matrícula, para referência futura. É uma distracção indesculpável numa rapariga cuidadosa, deixar que lhe vejam a matrícula do carro. Apalpei os bolsos à procura de cigarros e depois lembrei-me que tinha deixado de fumar há 3 dias.
Senti dúvidas. E se do outro lado estivesse uma coisa horrível? A net estava cheia de histórias assim. O puto de 17 anos que gastou as economias num bilhete de avião para ir ter com a cyber-amada ao Canadá e, quando lá chegou, descobriu que era uma velha de 70 anos. A rapariga que combinou uma semana de férias em Paris com um velho conhecido dos chats e apareceu duas semanas depois cortada às postas, espalhada pelos caixotes do lixo do XVIème Arrondissement. Et coetera. As histórias eram mais que muitas e todas diferentes, melhores do que um Stephen King ou um Michael Crichton algum dia conseguiriam inventar. O que sabia eu?
Passaram-me outras ideias horríveis pela cabeça. E se a tipa fosse da polícia? Uma operação qualquer para apanhar tarados na net. Vi-me apontado como torcionário. Diante do tribunal. Citado nos jornais.
Abri a porta do quarto. Fiquei um instante parado no umbral a olhar para dentro. Não havia nada para ver. O quarto estava às escuras. Na luminosidade que entrava pela porta aberta, por cima do meu ombro, só se distinguiam contornos vagos: a cama, uma cadeira, a porta da casa de banho. Havia um leve odor no ar, um perfume que reconheci mas não consegui identificar. Fiquei ali durante um bocado, atento aos ruídos. Mas não havia ruídos.
«Olá», disse eu.
Não houve resposta.
Devia ter dito: «Onde estás, minha puta?» Mas não fui capaz. Sou um tipo antiquado.
Pensei: vieste até aqui, agora entras. Não vais armar em maricas e fugir com medo do escuro. Mas continuei ali parado. Vinha-me outra vez à ideia o Bobbitt.
A gaja, se estava a fazer aquilo de propósito, era mesmo boa. Sentia-me como se estivesse dentro de um filme. Sem o «câmara, acção!» para tirar a ponta.
E nada, nem um rumor. Raio de vida.
«Olá», disse eu outra vez, e entrei.
Dei dois passos dentro do quarto e foi então que a porta se fechou. Devagar e sem barulho. A luz extinguiu-se dentro do quarto como se se tratasse de um túmulo e eu senti as bolas enrolarem-se e tornarem-se pequeninas como as de um bébé. O que eu queria realmente era pirar-me dali para fora. A puta que se lixasse. A queca que se lixasse. A minha honra que se lixasse.
«Olá», disse então a voz dela atrás de mim. Era a voz dela.
«Olá», disse eu mais uma vez, sem me virar.
Nos filmes, esta imobilidade corporal transmite tensão e firmeza. Mas eu não sentia firmeza. Estava paralisado. Senti as mãos dela subirem pelas minhas costas, por cima da camisa. Uma língua molhada tocou-me o pescoço. Senti-a respirar mesmo por trás de mim e senti um cheiro agradável, a pastilha elástica, que me descansou. Então, de repente, houve um movimento brusco e um tecido encostou-se-me à cara, por cima dos olhos e do nariz. O toque do tecido transformou-se em pressão quando ela apertou o nó na minha nuca. Reconheci um lenço de seda. Não ofereci resistência. Não senti falta de ar, nem ânsias. Senti curiosidade: o que era aquilo. E senti um arrepio nos tomates. Depois as mãos dela rodearam o meu peito e começaram a desapertar-me os botões da camisa, e depois das calças. Duas mãos frias espalmaram-se contra o meu peito.
Eu teria preferido encontrá-la deitada na cama, nua e disponível. Talvez com o lenço de seda em volta do pescoço. É um fétiche meu: corpos de mulher nus com o pescoço tapado. Mas não disse nada disso. Perguntei:
«Onde estão as correntes?»
«Queres?» retorquiu ela num tom perigosamente interessado. Tive a certeza que não era no corpo dela acorrentado que ela estava a pensar.
«Talvez noutra ocasião», respondi.
O corpo dela era morno e firme, levemente musculado. Ombros largos. Mamas pequenas. Tudo bem. Nunca gostei de mamas grandes. Sobram das mãos. E sobra é desperdício.


Fodemos. Também não vou descrever. Já há muitas descrições. Algumas muito melhores do que qualquer coisa que eu tente fazer.
Depois de fodermos fiquei sentado na cama, ainda vendado. Ouvia-a andar pelo quarto, abrir a água, mexer em roupa.
Sentia-me estúpido, ali sentado, nu, vendado, à espera, portanto pus-me a falar.
«Vou confessar uma coisa», disse eu. «Receava que fosses uma velha horrorosa. Este segredo todo... Qual é a cor dos teus olhos? Não respondes? Está certo. Eu não te vejo e tu não falas. Se fosse filósofo, perguntar-me-ia se existes realmente ou se não passas de uma alucinação. Uma construção virtual do meu cérebro. Demasiada exposição às radiações do écran. Conheces aquela frase: como é que se pode viver sem conhecer Palermo? Como é que se pode dormir com alguém sem lhe ver a cara? Olha, vou retirar a venda. A brincadeira teve piada mas agora chega. Concordas?» Não houve resposta. «Vou tirar a venda», avisei. «Agora.»
Tirei a venda. Não havia mais ninguém no quarto.
«Foda-se!»
Deixei-me cair para trás nos lençóis. Estava cheio de sono. A idade não perdoa.


O motor de um carro. Não valia a pena correr à janela. Tenho boa memória visual. Tinha a matrícula gravada no meu cérebro. Ri-me.


A matrícula pertencia a um rent-a-car. Soltei uma praga. A puta!

3. jazz

Gostas do som do trompete?
Tocarias para mim?
Por que não? Tocaria um blues lento. E mandar-te-ia fazer um strip à minha frente.
Fá-lo-ia se gostasse da música.
Ias gostar.
E depois?
Mandava-te ficar com os sapatos. Saltos altos, evidentemente.
Evidentemente.
Nua diante de mim, só com os sapatos. E eu tocaria para ti o melhor blues de que sou capaz. Depois pegava num cigarro e fazia-te sinal para te sentares à minha frente. Mandava-te afastar os joelhos. Pegava no bocal do trompete e metia-to na rata. E beijava-te.
Diz mais. Por favor.
Então retirava o bocal da tua rata e começava a tocar outra vez. Enquanto eu tocava bluesy tu tinhas de me abrir as calças e chupar. Eu continuava a tocar. Ao fim de um bocado eu parava de tocar e tu paravas de chupar. Eu então deitava-me de costas e mandava-te sentar em cima de mim, de forma a enterrares-te toda em mim. Começavas a foder e eu tocava e tu fodias ao ritmo da música.
Sim.
Fá-lo-ias? Mesmo quando as pessoas começassem a aparecer, atraídas pelo som?
Eles que vejam apenas as nossas sombras. Deixa a gente ordinária sofrer.
Eu tocava e tu enterravas-te em mim ao ritmo da música até te vires. Então saías de cima de mim e eu voltava a tirar o bocal do trompete e punha-to na boca. Tu ajoelhavas-te diante de mim, boca levantada, o bocal preso nos teus lábios. E eu vinha-me para o bocal.

2. pont neuf

Saímos do caveau. Matilde tinha estado a meter-se com o pianista, a fazer olhinhos de puta a ele e ao resto dos músicos, a roçar-se no saxofonista, e eu estava furioso. Parámos numa cervejaria aberta no cais do Sena e eu dei largas à minha fúria. Ela ria-se.
«Não fiz nada de mal. Estava alegre. E eles estavam alegres.»
«Eles estavam a apalpar-te e tu és uma puta que lhes deu troco.»
«Não sou nada.»
«Claro que és.»
«Pois sou.»
Concorda com o que eu digo e sorri.
«Je suis une putain», repete. Em voz alta. Sorri. Dois clientes sentados na mesa ao lado olham para nós, curiosos.
«Porra, és mesmo estúpida!»
«Gosto de ti.»
«Mas fazias um broche a qualquer um.»
«Não sei.»
A discussão continua, baixa porque não estou para vergonhas, violenta porque estou meio bêbado e quando estou bêbado fico violento. Ela ri-se. Eu chamo-lhe nomes. Ela gosta. Eu odeio-a. Ela ri-se. Eu desisto. Merda!
«Eu gosto de ti», repete ela.
«Está bem.»

Depois.
Matilde quer tirar fotografias a fazer strip tease na Pont Neuf. Faço-lhe a vontade.
Há um homem sentado num dos bancos da ponte, mais à frente. Está a fumar e olha na nossa direcção, e vê Matilde, que naquele momento está nua da cintura para cima, os braços levantados acima da cabeça, que atirou para trás, as mamas atiradas para a frente pela posição do corpo. O homem olha durante alguns segundos, depois volta a olhar em frente, para o rio. Volta a levar o cigarro à boca. Tenho a certeza que não acredita naquilo que viu. Ou teme que se trate de alguma serial killer. Ou, ainda pior, que seja mais uma partida dos Apanhados. Imaginem um tipo ser apanhado pela mulher e pelos amigos a correr atrás de umas mamas na Pont Neuf. O homem não corre riscos, não volta a olhar. A situação é irreal porque há uma mulher a despir-se a quinze metros dele e ele olha para o rio. Parece uma daquelas situações vitorianas em que aquilo que é moralmente reprovável ou insólito, é pura e simplesmente invisível. O homem deixou de ver Matilde. Ela não existe. Suponho que ela podia começar a foder ali, em plena ponte, e ninguém se aproximaria. As pessoas não acreditam naquilo que se afasta da realidade vulgar, e portanto não vêem. Matilde, nua em cima da ponte, é um OVNI.
Os dois vagabundos que estão a dormir debaixo da ponte e que ela vai desinquietar a seguir não reagem da mesma maneira. Eu sei que ela queria provocar espanto, lascívia, talvez levá-los a baterem uma punheta à frente dela. Despe-se completamente à frente deles e esboça uma dança erótica, aproxima-se tanto dos cobertores em que eles se embrulham que sente o cheiro rançoso de meses de sujidade e suor acumulados. Mas a reacção deles é o perfeito anti-clímax: «Police!» dizem, e encolhem-se mais contra o pilar da ponte. «Police!» Matilde, ao princípio, pensa que estão a pedir a ajuda da polícia, e começa a rir. Mas depois entende: eles pensam que ela é da polícia e que está a estender-lhes uma armadilha. Eles avisam-se um ao outro e recuam porque querem estar sossegados no seu covil, embrulhados no seu ranço, felizes como sempre foram.
Matilde, derrotada, veste-se novamente e regressa à rua.

Quando chegámos diante da loja de revelação rápida, eu parei:
«Quem vai lá, minha querida? Eu ou tu?»
«Que estupidez!» exclamou ela. «Qual é o problema? Vou eu.»
E atravessou a rua.
Quando voltou trazia o envelope com as fotografias apertado contra o peito e respirava mais depressa.
«Então?» perguntei.
«Meu Deus!»
Não falámos mais até chegarmos às proximidades do Louvre, altura em que Matilde se deixou cair numa cadeira de esplanada e soltou um sonoro: «Fuck!»
«Foi muito mau?»
«Meu Deus, o tipo que me atendeu reconheceu-me das fotografias, tenho a certeza, e chamou outros dois, de repente havia uma data de gente atrás do balcão, só para olharem para mim. E as fotografias sem aparecerem e eu ali parada, olhada, violada literalmente por aqueles impotentes!»
«Sim, suponho que as fotografias devem ter sido muito comentadas pelo pessoal da loja.»
«Comentadas? Devem ter batido punhetas com elas! Só não sei como não começaram a batê-las ali à minha frente!»
«Suponho que o gerente não permitiria uma coisa dessas.»